terça-feira, 25 de setembro de 2012

"A vida com nosso filho com trissomia!


Depoimento de Jean-François extraído do livro “Além da Deficiência Física ou Intelectual Um Filho a Ser Descoberto” de Francine Ferland. Londrina: Lazer & Sport, 2009.


"Logo que casamos, em 1985, nós combinamos, Anne-Marie e eu, de ter pelo menos três filhos. Depois de anos de esforço e uma viagem a Portugal com o objetivo de reavivar o lado latino de minha esposa (ela é de Portugal), Anne-Marie ficou finalmente grávida. Devo eu agradecer às divindades portuguesas, quem sabe? Enfim, nosso sonho tomou forma no interior dela.
Este sonho continha todos os desejos de juventude que nós não pudemos infelizmente completar: nosso filho teria a maior coleção de livros possível e a chance de poder cursar os estudos universitários que o colocaria em uma profissão valorizada. Resumidamente, queríamos o melhor para ele, como todos os novos pais.
Durante a gravidez, acontecia de falarmos, entre outras coisas, da escolha de seu nome. Eu queria uma menina, então não tinha nome para meninos. Anne-Marie não tinha preferências por uma menina ou por um menino. O que interessava para ela é que a criança tivesse saúde. Ah! A saúde. Quantas vezes falamos disto: O que você faria se o bebê tiver uma deficiência? Difícil resposta, mas eu sempre encerrava falando que seria melhor não tê-lo.
Já estávamos no mês de março e os nove meses de espera chegaram ao fim. Um pequeno problema surge neste momento: o bebê está virado! Minha mulher deve ir ao hospital para que o médico coloque o bebê na posição adequada. Estranho! Eu pensava que todos os bebês voltavam ao lugar automaticamente. Não, disseram, isso acontece às vezes. Está bem, esperemos os acontecimentos. Três dias mais tarde, Anne-Marie me chama e fala: Querido, venha rapidamente, tenho contrações com intervalos regulares. Pronto. Serei pai em poucas horas! Que devo fazer? Preparar as compressas de água fria? Não, isto é nos filmes. Comprar fraldas? Não, eu já comprei cinco pacotes esta semana. Comprar flores? Ah, isto não, eu nunca ofereço flores para Anne-Marie, ela vai pensar que fiz qualquer coisa e estou pedindo desculpas.
Depois de todo esse estresse, chego em casa e Anne-Marie me recebe com estas palavras: relaxe, meu querido, não será em cinco minutos que vou parir. Que alívio! Faço uma rápida refeição e saímos de casa em torno de 19 horas para irmos tranquilamente ao hospital. Eu me lembrarei sempre da claridade da lua nesta noite. Era mágico. Chegando ao hospital, estaciono meu carro a uma certa distância para andarmos como o médico havia aconselhado em nosso encontro pré-natal. Mas exagerei, foi preciso andar 30 minutos antes de chegar!
No serviço de obstetrícia, ligam Anne-Marie em diferentes aparelhos, de repente minha mulher deu um grito e foi um choque para ela e para mim descobrir a força de seus gritos durante as contrações! Mais ou menos à uma hora e quarenta e cinco minutos, uma enfermeira nos falou que estava na hora de ir para a sala do parto. Você vem? Ela me perguntou. Não senhora,  falei, prefiro ir ler um bom artigo que vi em uma de suas revistas. Ufa!... Eu e o meu coração tão sensível nos salvamos, eu e ele fomos para a sala de espera, onde todas as revistas tinham mais de dois anos...
Por volta das duas horas, ou seja, quinze minutos mais tarde, vejo chegar o médico. Ele tem um rosto de enterro e não de alguém que vem anunciar uma boa notícia. Ele senta a meu lado e começa falando que é um menino. Depois ele faz uma pausa antes de falar em inglês: Your child´s got Down syndrome. No final da frase, ele toca minha perna, se levanta e sai da sala de espera me deixando com aquelas palavras.
Um processo se inicia imediatamente na minha cabeça: o que é Síndrome de Down? Esforçando-me para procurar uma resposta, me lembro que se trata de um retardo intelectual. Vou em seguida à procura do médico. Eu o encontro em frente ao berçário e me apresso em perguntar se realmente se tratava de um retardo intelectual. Ele me olha e fala Yes, se vira e sai em outro corredor. Ele me deixa de novo sozinho, diante de uma situação para a qual eu não estava preparado.
Em seguida, vou ver Anne-Marie, que ainda nada sabia. Vendo minha expressão, ela pergunta imediatamente: A criança tem  um problema? Sim, tem um retardo intelectual. Nós nos olhamos, depois falamos do bebê sem lágrimas, sem revolta. Em seguida, o silêncio, de duas pessoas abaladas... Levei os efeitos pessoais de minha esposa comigo, lhe dei boa noite e saí do hospital. Entrando em meu carro, comecei a chorar. Porque nós? Fizemos alguma coisa que não fosse correto? Depois destas perguntas, eu começo a amaldiçoar a vida, e também a minha mãe que me colocou no mundo e depois todos os próximos que tinham filhos sem nenhuma deficiência. Toda minha raiva acontece aí, enquanto nove meses de sonhos se vão.
No retorno à minha casa, abro imediatamente uma enciclopédia médica para saber sobre Síndrome de Down (É conhecida como trissomia do 21. Antigamente chamavam de mongol às pessoas que apresentavam essa síndrome). Que erro! O texto era muito negativo e sem esperança nenhuma: é importante falar que a enciclopédia era de 1977! Eles optaram por uma foto de uma pessoa não muito bonita para confirmar o que falavam. Com o coração completamente partido, me deitei. Em meu sonho, estou ainda muito atrapalhado, mas inconscientemente eu tinha dado um grande passo aceitando a criança como sendo minha.
Até o momento, este mal-estar permaneceu enter minha mulher e eu, agora devo dividir com minha família e meus amigos. Imagine um pouco o cenário, pegar o telefone, ligar para sua família para que digam Parabéns Jean-François, como você deve estar feliz! Então, devo contar esta história que gostaria tanto de esquecer. A primeira pessoa com quem entro em contato é minha sogra. Ela não compreende nada do que está acontecendo. Como nosso filho tem todos os seus membros e parece estar em boa saúde, ela não vê onde está o problema. De fato, o problema está no olhar dos outros e no silêncio. Este silêncio tão pesado quando ninguém nada diz, porque cada um está tão abalado quanto nós.
Os três dias passados no hospital são os piores. Ver todos estes pais felizes com os seus bebês enquanto nós estávamos tão infelizes. Temos direito também a uma visita em regra de quase todo o pessoal do hospital. Não para aumentar nossa moral, mas para nos dizer que seria melhor deixarmos Karl. Segundo eles, estas crianças não são nada na vida. O mais difícil para nós é que não sabíamos nada sobre a trissomia do 21 e as únicas pessoas capazes de nos ensinar nos mostram somente o lado negativo da história.
Felizmente, depois do nascimento do Karl, jamais foi pensado, nem por Anne-Marie nem por mim, abandonar nosso filho. Nunca nos perguntamos, nem mesmo abordamos o assunto, a decisão veio naturalmente. Karl era nosso filho e era, antes de tudo, um ser humano que só pedia para ser amado.
Sempre me lembrarei do último dia no hospital. Neste dia, uma enfermeira veio nos ver. Vocês sabem, disse ela, estas crianças podem fazer muito, esqueça o que os médicos dizem. Ela nos estendeu um pedaço de papel no qual estava escrito o endereço da Associação Montreal para a Deficiência Intelectual. Estas palavras e o pedaço de papel foram o ponto de partida de uma nova vida. Logo no dia seguinte fui a esta associação. A recepção é das mais agradáveis. Encontro muitos livros sobre a Trissomia do 21 e, além do mais, tive a sorte de encontrar uma jovem mãe que tinha também um menino como Karl. O que mais me surpreendeu é que esta mãe ri e parece tão feliz quanto qualquer outra.
Nas semanas seguintes conhecemos a Trissomia do 21 (aprendemos que se trata de uma aberração cromossômica desde a concepção que designa um estado e não uma doença) e vamos buscar ajuda, pois ajuda existe. Karl tem apenas um mês quando começam suas sessões na terapia ocupacional, que consiste em exercícios físicos para ajudar a desenvolver seu tônus muscular. Três meses mais tarde, uma educadora especializada do centro de readaptação se apresenta em nossa casa, a fim de estabelecer conosco um plano de intervenção. Estes programas de intervenção precoce permitem estimular ao máximo as crianças com uma deficiência para ajudar a desenvolver um potencial que nós acreditávamos antes inexistente.
Enfim nossa vida retoma o ritmo. Várias pessoas que encontramos muitas vezes nos dizem como somos bons de cuidar tanto assim de nosso filho e quanto isto deve demandar nosso tempo, mas não! Cuidamos de nosso filho como fazem os outros pais. Os programas de estimulação (em torno de 30 minutos por dia) não demandam mais tempo do que a educação das outras crianças. Tudo o que devemos fazer é brincar com Karl. Quando ele tem de fazer os exercícios para aprender a engatinhar, o ajudamos colocando uma toalha abaixo das axilas. Quando ele tem que aprender a transferir um objeto de uma mão para outra, multiplicamos os exercícios utilizando o seu brinquedo preferido. Nada muito complicado! O único mérito que temos é de ser muito pacientes. É necessário repetir sempre e recomeçar o mesmo movimento mais de uma vez, mas que orgulho quando Karl consegue o movimento!
Os meses se sucedem e a vida segue seu curso. Nossas famílias se adaptam bem a Karl tanto quanto nós. Experimentamos uma perfeita felicidade até o dia que devemos enfrentar a sociedade pela primeira vez. Karl tem um ano e meio, e pensamos que seria importante para ele e para os outros que ele frequentasse uma creche comum. Lá ele poderia ser estimulado pelas outras crianças e aprender a viver em grupo seguindo regras. Isto permitiria a outras crianças conviver com uma criança com deficiência e descobrir a beleza da diferença.
Para fazer a matrícula de Karl, procedo da mesma maneira que outro pai, me dirigindo às creches de meu bairro. Após cinco contatos, nenhuma aceita meu filho quando eu falo que ele tem uma Trissomia do 21. Não tenho nem tempo de descrever meu filho Karl e muito menos de falar sobre minhas expectativas.
São nestas situações que nos ferimos. Pois, depois de tudo, nossos dias se desenvolvem como em outras famílias, com alegrias e tristezas. Acabamos por esquecer a trissomia de Karl. Entretanto, quando nosso filho é recusado em um espaço público pela sua deficiência, a sociedade nos lembra cruelmente sua diferença. Entretanto, se me olho no espelho, vejo um pai como todos os outros pais e quando olho Karl, vejo um ser humano como todos os outros. A única coisa que o distingue é uma deficiência intelectual que o restringe em algumas aprendizagens.
Felizmente constato, desde o nascimento de Karl, que a sociedade evolui lenta mas seguramente, e isto graças à sensibilização que é feita com pessoas com deficiência. Hoje Karl tem três anos e sua alegria de viver é contagiosa. Ele anda sem dificuldades, repete muitas palavras (começou os exercícios para aprender a falar) e compreende facilmente as ordens. É uma criança especial, que adora as festas familiares, a dança e principalmente as batatas fritas do McDonald´s. Creio que ele prefere elas a mim! Frequenta uma creche comum há um ano (que eu descobri sem querer a alguns quilômetros de casa) e faz enormes progressos principalmente no plano social. Do nosso lado, minha esposa e eu decidimos ter um segundo filho. Desde abril, Karl tem uma irmãzinha, Rebecca. E é um amor louco entre os dois! Veja, a vida continua..."

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